quinta-feira, 2 de junho de 2011

O CORAÇÃO SOB A ÓTICA DA MEDICINA CHINESA

          
          Diferentemente do nosso cartesiano e mecanicista modo de pensar, a medicina chinesa vê nossa anatomia e fisiologia sem a separação clássica entre espírito, mente e corpo. Tal como uma baqueta e som emitido pelo tambor, a medicina chinesa classifica os desequilíbrios orgânicos através de ressonâncias, de padrões que podem ser observados e utilizados tanto como meio de diagnose quanto para tratamento.
            Tentarei através de uma breve exposição mostrar um pouco desse conhecimento, que devido à distância que nos separa desta época, torna-o obscuro e difícil a compreensão devido às bases que atualmente formam nossa maneira de pensar.
            Para o pensamento chinês, o coração é um vaso abissal, um vaso de paredes percorridas por um sangue sempre renovado, enchendo-se e esvaziando-se. O que enxergamos como músculo é o templo do espírito.
            Em textos antigos de diversas culturas, inclusive na Bíblia temos várias passagens que se referem ao Coração como sede das intenções e dos pensamentos.  Não encontramos referência em qualquer texto antigo ao nosso encéfalo como sede dos sentimentos e da consciência. Apenas na dinastia Ming houve a teoria de que o Yuan Shen localizava-se no cérebro. Não quero com isso afirmar que o sistema nervoso central não tenha participação nos processos de cognição, percepção, intelecto, e também sentimentos. A proposta é agregar conhecimento e não defender teses sobre qual é a visão mais correta, ambas são complementares.  Alguns mestres renomados de Qigong afirmam que o yuanshen localiza-se no palácio Niwan (designação clássica para a glândula pineal, também referido como salão de jade), sendo esse centro ligado à consciência celeste, e o coração carnal à consciência terrestre.
            Para os antigos chineses o coração é o centro dos sentimentos, e o cérebro um centro de elaboração e resposta que transforma as mensagens em algo que possa ser decodificado em linguagem humana.
            Na cultura chinesa a matéria liga-se à energia e a energia vivifica a matéria. No nosso corpo o espírito (sopro vital) liga-se ao sangue vivificando-o e também o movimenta, pois a base da vida é o impulso gerado pelo sopro vital. A matéria serve de base material para a ação do espírito.  O espírito precisa de carne para encarnar-se e ter o que chamamos de vida, e a carne precisa do espírito para iluminar-se. Somente a presença de um dá vida ao outro, assim como a Terra vive somente do Céu, e o Céu existindo apenas para a Terra.
            Entre o Céu e a Terra está o Homem, e no seu centro mais profundo ocorre a mediação.
           
            O coração tem o cargo de senhor e de mestre dos 5 órgãos e 6 vísceras. Do coração depende a felicidade ou a infelicidade, a doença ou a saúde, a longevidade ou a morte prematura.

            De acordo com a fisiologia e fisiopatologia energéticas, o coração abre-se na língua, dessa forma dificuldades de elocução, fala confusa, alterações na velocidade e ritmo no expressar-se mostram uma patologia na qual o coração está envolvido. Outra ressonância que pode ser claramente percebida é o tom vermelho na face, que pode ser para um excesso de cor vermelha, ou para uma insuficiência que se expressa pela palidez. Dessa forma, uma pessoa cuja face é vermelha, com fala rápida, gestos corporais ágeis, voz alta e tom em riso, apontam para um excesso de energia. Já uma face pálida, com voz baixa e tendência a falar pouco, gestos corporais lentos, frio nas extremidades, apatia e melancolia, apontam para uma deficiência de energia deste órgão em particular.
            O coração como o soberano imperador do nosso organismo necessita de paz para que seu governo seja tranqüilo e que a harmonia prospere entre os 5 órgãos e 6 vísceras.
            Segundo o conhecimento clássico, o Fígado rege a raiva, mas o Fígado não sente a raiva, quem sente é o Coração.  Os Pulmões regem a tristeza, mas não sentem essa tristeza, quem sente é o Coração. Os Rins geram o medo, porém eles não sentem o medo, mas o Coração sente. O Baço rege a preocupação, porém ele não sente a preocupação, mas o Coração sente. O Coração é o Soberano Imperador dos órgãos e vísceras do corpo, a sede central dos sentimentos.
            Para preservar este órgão que tem influência tão grande sobre nosso estado de saúde, longevidade e bem-estar, os textos nos advertem: Não sobrecarreguem seu coração. O coração se enche sem aperceber-se disto. Tão logo nos dermos conta desta saturação, sempre má, senão fatal, torna-se necessário esvaziá-lo.   Nossos apegos necessitam ser descartados, pois via de regra são a fonte do sofrimento humano e quando nos desprendemos dos nossos apegos, certamente  o que perdemos são coisas ruins e que não são nada construtivas do ponto de vista psico-emocional. A atitude de encher-se e abarrotar-se lhe é natural, já que cabe “encarregar-se de todos os seres” (preocupações, estratégias...). Estamos no mundo, de fato, e o ser humano basicamente vive para as suas emoções e desejos e vive  para usufruir desta condição. Mas a vida é um surgir cuja potência e limpidez devemos proteger na fonte. A exteriorização, pelo contato exaustivo com os seres com o qual convivemos, é a principal ameaça à nossa própria longevidade. Deve-se banir o uso intenso dos sentidos,  pois todas as aberturas sensoriais são governadas pelo espírito e isso alvoroça o coração. Devemos pensar em aprender a desaprender, a mantermos o nosso centro vazio para que possa aprender novas coisas sem os preconceitos e idéias que em grande parte bloqueiam novas experiências e distorcem o presente com base em informações passadas.
            Dentro deste contexto podemos perceber a importância que é dada pelos orientais à práticas como a meditação, tai chi, qi gong, cerimônia do chá, arranjos florais, jardinagem, artes marciais. A disciplina e a interiorização, a quietude e reflexão visando descartar o que não é essencial e indispensável para a saúde do espírito e do corpo. Mas não geremos confusão a este respeito. Como diz o Zhuang Zi: “A quietude dos homens santos não é: É bom viver em paz, vamos ficar quietos”. É quietude do coração que ninguém pode abalar: assim é a sua quietude.”
            Mas é difícil a arte de manter este coração,manter a quietude interna e a consciência constante dos movimentos interno e externos não é tarefa fácil. O livro dos ritos aborda bem esta questão nesta passagem:
   “No primeiro momento de sua existência, o coração do homem está na mais absoluta calma (está isento de qualquer desejo); o céu forma-o neste estado. Logo os objetos exteriores atuam sobre ele e nele produzem diversos movimentos; são os desejos que se acrescentam à sua natureza primeira.
    Na presença de objetos exteriores, o homem tem a faculdade ou desejo de conhecê-los; ao conhecê-los, ele experimenta sentimentos de atração por uns e sentimento de repulsão por outros. Se ele não dominar esses sentimentos, deixa-se levar pelas coisas exteriores e torna-se incapaz de voltar para dentro de si e ter de regular os movimentos do seu coração; ele perde as boas disposições que recebeu do Céu.

            Enfim, devemos viver com o Coração, saber esvaziá-lo, para em seguida enchê-lo novamente como o faz um criança. É preciso  desenvolvermos um tempo diário para termos um pouco de comunhão consigo e compreender o caminho ou via individual que só nós podemos seguir nesta vida. Precisamos estar atentos ao que diz nosso coração em cada negócio que conduzimos, em cada ação realizada, em cada pensamento, para que possam estar de acordo com o coração e não contra ele. Em caso de dúvida basta senti-lo através das sensações que irradiam deste centro. A intuição depende do Coração e a análise racional e crítica da mente. Esses dois centros precisam de harmonia, cada qual tem seu peso de importância.
            Agir de acordo com o Coração torna-nos saudáveis física e emocionalmente, e o coração (como órgão) se mantém saudável.
            É de suma importância regular a atividades dos dois centros, o coração celeste (espiritual) e o terrestre (carnal), para que a vida siga o curso natural e não se desenvolvam perversões que fatalmente encurtariam a vida do ser humano.






Por Isaac Padilha Guimarães Jr.
Especialista em Acupuntura
Professor do IBRAMPA.







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